sábado, abril 26, 2014

Mais de 40 dias sem celular.

Conclusões, chutadas e nem um pouco científicas, de uma experiência sociológica ao passar um "longo" período sem celular em pleno século XXI. 

Depois de muita resistência, contrariando a todas as expectativas, estatísticas, superando todo meu histórico desastroso com celulares, na última terça-feira de carnaval, 04 de março, eu perdi meu celular. Foram quatro anos com o mesmo. E por isso que eu digo que contrariou a todas as expectativas. Meu histórico com celulares sempre foi terrível. Roubados, perdidos, quebrados, eu já consegui perder um celular três dias depois de tê-lo comprado. Um vida de traumas. Mas este último foi um guerreiro. Já existiam inúmeras campanhas para que eu trocasse, afinal de contas, em quatro anos, a tecnologia avançou consideravelmente, logo meu aparelhinho com teclado alfanumérico era uma verdadeira heresia da tecnologia. Mas era uma questão de honra, era preciso ver até onde resistiríamos! (mentira, eu só não tinha coragem de gastar com um aparelho novo sendo que o meu estava lá, funcionando perfeitamente!)
Por fim, o celular que foi perdido, havia sido encontrado por uma boa alma, mas estava muito difícil de nos encontrarmos, depois de muitos desencontros, desapeguei. Abandonei o aparelho, o chip, tudo. Foi-se. Vamos começar de novo e do zero, mas para isso, fiquei mais de quarenta dias sem celular. Digamos que foi uma experiência sociológica. Consigo ver até os títulos acadêmicos para esse experimento: O indivíduo urbano sem telefone celular por quarenta dias no séc. XXI.

E eis aí os dados que pude recolher a partir desse experimento:

1. O que mais faz falta: o despertador.
Passado o feriado, na hora de voltar ao trabalho, pensei: E agora? Como vou acordar? E aí que você se dá conta de que não tem nem mesmo um relógio em sua casa. Despertador então, menos ainda. E descobre recursos que nem sabia que existia! Lembram-se do despertador da telefônica? Ele ainda existe! Toca-se o telefone no horário programado. E descobri até despertador on line! Foram muitos os recursos que usei nesses dias, mas, o mais impressionante foi que, no fim das contas, descobri que...
2. ...É possível acordar no horário sem despertador. 
Pois é, criei um relógio biológico pontualíssimo. E todos os dias (inclusive aos finais de semana) eu costumei acordar sempre por volta do mesmo horário. Não importando a hora que tivesse ido dormir. Não achei que fosse possível, mas é. Ainda existe uma insegurança e, conforme o cansaço, às vezes falha. Mas que nosso corpo cria uma rotina, ele cria sim. 
3. O que faz a gente se atrasar é o soneca e os recursos de mensagens instantâneas.
Com a soneca, você relaxa. "Daqui dez minutos eu levanto". E assim vai, mais dez, dez, dez... até que você tem apenas dez minutos para chegar na hora certa. Se não tem a soneca, com o primeiro despertar, a opção é levantar. Afinal, você não vai correr o risco de voltar a dormir e não acordar mais.
Você marcou com alguém às 11h. É 10h50. "Nossa, vou mandar uma msg avisando que estou atrasada". Se não tem como mandar a msg ,você usa esses dez minutos para ficar pronta e vai. E não gasta metade dele mandando mensagens. Aliás, se você sabe que não terá como avisar a pessoa do seu atraso, há muito mais esforço para cumprir o compromisso do horário.  
4. O telefone fixo ainda funciona. 
E muito bem, inclusive. Não tem o problema da falta de sinal. Não tem o problema de acabar a bateria. Não tem problema conforme as operadoras. Não tem que ficar se preocupando se é claro, se é oi, se é tim, se tem bônus, não tem bônus, é barato, não é barato, não ouvi porque está no modo vibra, ou não achei dentro da bolsa, ou esqueci no carro. O nome mesmo já diz, fixo. Ele está no mesmo lugar, vai tocar em alto e bom som e se você não atendê-lo é porque realmente não pôde, logo não adiantaria muito tentar o celular ou algo do tipo. Eu, na maior parte do meu tempo livre, estou em casa. Se não estou, geralmente não posso atender ao celular (como no trabalho, por exemplo). Percebi que causamos uma dependência excessiva do celular, quando, na verdade, ele só deveria ser um recurso a mais, para emergências, para pessoas que viajam muito, por exemplo. Ele substituiu a telefonia convencional, mas não funciona tão bem como ela e é bem mais caro.
5. Você não irá perder todas as coisas do mundo se as pessoas não conseguirem falar com você no exato momento em que quiserem. 
Somos muito, muito, muito imediatistas. Tudo tem que ser instantâneo. Já vi pessoas desesperadas porque a bateria do celular estava para terminar. Ou porque estava sem sinal. Ou então porque havia esquecido em casa. Ou ainda porque não escutaram enquanto ele tocava. No bar, ele tem que ficar em cima da mesa, para que possamos ver se ele está tocando ou não. E atender na hora. E responder na hora. Viu e não respondeu? Que absurdo, que descaso! Liguei e você não me atendeu! Para quê tem esse celular? Tudo tem que ser imediatamente. E, confiem em mim, não precisa ser assim. Tirando as emergências, que são 0,01% dos casos em que recebemos ligações, não há necessidade de que tudo seja instantâneo.  Nesse tempo que fiquei sem celular, eu fui ao médico, fiz exames, cumpri minhas obrigações no trabalho, fui até convocada para um concurso público que fiz em 2011. Não perdi nada que fosse realmente importante, deu tudo certo e minha vida funcionou muito bem.
6. Quem quer realmente te encontrar saberá como fazê-lo.  
As pessoas mais próximas e as que precisam saber, sabem seu telefone fixo, sabem seu e-mail, onde moram, onde trabalha. Elas vão te encontrar. E nem é algo tão difícil assim de se fazer.
7. A pressão social é fortíssima. 
Eu percebi que se alguém decidir tomar a decisão de optar por não ter um celular ela não pode. Não era o meu caso, eu não pretendia viver sem, mas se eu decidisse fazê-lo seria tão desgastante que não vale a pena. É melhor ter um nem que seja só para ser despertador, relógio, agenda, joguinho, sms, whatsapp, etc. do que ter que aguentar o espanto das pessoas para o fato de que você consegue viver sem celular no séc. XXI.
8. Nunca dispense a agenda de papel. 
Lembro que quando mais nova eu sabia MUITOS números de telefone de cor. Alguns, sei até hoje. E de repente, me toquei que eu não sabia o número de telefone do meu irmão, por exemplo. Eu nunca precisei saber. Quando eu telefonava para ele, ia nos contatos e discava. Perdi celular, perdi agenda, perdi muitos números. Alguns, eu realmente não precisava mais ter, porque com certeza eu senti falta de bem menos números do que eu tinha na minha agenda. Em todo caso, comprei uma agendinha telefônica no 1,99 e vai ficar ali pra sempre. Porque ninguém vai roubá-la, nem vou perdê-la ou ela vai "sumir com meus contatos".
9. Banalização das fotografias.
Isso eu percebi bem antes de perder meu celular. E eu ainda não entendo.
A pessoa vai ao bar com os amigos. Eles vão se encontrar, dar risada, se divertir. Às vezes, faz tempo que não se veem. E aí, para celebrar o momento, a pessoa tira uma foto... DO COPO.
Ela não terá, talvez, nenhuma foto com os seus amigos. Mas tem uma foto do copo. PRA QUÊ????? Quando ela tiver saudade dos amigos ela vai ver a foto do copo???
Para mim, foto sempre foi um registro de momentos, para depois poder reviver, relembrar, sentir e saciar a saudade. O que as pessoas sentem quando veem as fotos de seus celulares? É legal ficar revendo copos, taças, pratos de comida, fotos de si mesmo em frente ao espelho, unhas, maquiagem e etc?
Aí, quando raramente alguém tem a brilhante sugestão: "vamos tirar uma foto nossa - quem tem o celular, vamos lá.." - e tira-se uma foto com verdadeiro sentido (momento, as pessoas, o que vale a pena), nunca se veem essas fotos. Não vai "pro face", não vai "pro instagram", às vezes, só se tem acesso a elas com muita insistência. Conclusão: a geração selfie e instagram faz do celular nada mais do que um instrumento do ego.
10. O problema não é o celular. 
A invenção foi ótima. Necessária, importante. É ótimo saber que você pode ter o telefone móvel e a evolução desse aparelho é impressionante, você reúne diversas funções em um único lugar. Isso é muito bom. O problema, como sempre, é o mau uso. Ou ainda, o consumo excessivo. Não é porque ele evolui constantemente que você precisa acompanhar todas as evoluções. Você não precisa de todas as funções que ele disponibiliza. Você não precisa ter um aparelho novo a cada nova estação. A curta duração da tecnologia é alarmante e preocupante. Não podemos fechar os olhos para todas as consequências do consumo desenfreado.
Vivemos em uma sociedade capitalista, o consumo faz parte das nossas vidas, não tem como se desvencilhar completamente desse contexto social-histórico, mas acho que cabe a reflexão. O consumidor se vê em uma posição isenta de responsabilidades. "Eu trabalho, pago meus impostos, mereço poder comprar as coisas que quero" - o consumo torna-se uma recompensa, uma forma de encontrar satisfação às suas insatisfações diárias. Assim, só valerá a pena trabalhar, contribuir para sociedade se eu puder ter este retorno. Por isso que vemos tantas pessoas nos shoppings o tempo todo, por isso que os pacotes de viagens envolvem roteiros de compras, por isso que em qualquer canto que se visite existe uma lojinha vendendo qualquer-coisa, por isso que todas as comemorações envolvem presentes, feriados descontos e promoções. O indivíduo só sente completo se puder comprar algo. Afinal, no capitalismo, só tem poder quem tem poder de compra. E esse poder causa prazer. Aqueles que não podem fazê-la se sentem excluídos (o que leva a todo o problema de violência e desigualdade social desse país).
Mas além disso, gostaria que houvesse a reflexão no sentido do nosso papel enquanto consumidores na exploração por trás das grandes indústrias. Para que você possa ter uma celular novo a cada nova estação é necessário que a empresa produza constantemente, sem cessar, os funcionários envolvidos nisso trabalham em regime exploratório, com baixos salários, péssimas condições, abusos, ameaças (se não fizer hora extra, rua), fora os casos de trabalho escravo de crianças e etc. O consumidor tem sua parcela de culpa nessa realidade. Consumir é financiar essa exploração. Ela só continua porque existe o consumo exagerado. E o seu pequeno prazer de comprar algo novo enriquece aqueles que já são extremamente ricos e que exploram a necessidade de sobrevivência de outros.
O "ter, possuir" é o único objetivo. Isso explica porque as pessoas se recusam a pagar por serviços e cultura, ao julgarem caros, porém pagam em produtos. Não pagam uma consulta com a nutricionista, mas pagam o Gojiberry. Não querem pagar um personal, mas compram uma bicicleta ergométrica. Não fazem terapia, mas compram uma garrafa de vodka absolut. Trinta reais no teatro é muito caro, mas cem reais em um batom (sim, um batom) está tudo ok, vale a pena, o produto é bom. Entenderam o raciocínio?
O que fazer? Não consumir mais? "Não seja hipócrita, você fala isso mas vai no shopping que eu sei" - Repito, eu sei que é praticamente impossível se desvencilhar do consumismo. Mas é possível buscar outras formas de satisfação. Buscar um prazer que seja menos superficial do que "comprar as coisas que eu quero". Você merece muito mais do que comprar as coisas que quer.
Merece viver em uma sociedade igualitária, em que todos tenham os mesmos direitos, haja justiça e paz.
Existem coisas muito melhores do que comprar para serem feitas na vida. A mídia faz você pensar que precisa disso para ser feliz. Mas não precisa. Acredite. Encontre aquela que te agrada e tente reduzir sua frustração e consumismo.

Bem, eu, agora, tenho um celular novamente. Agora voltarei a me atrasar para o trabalho, para os encontros e a procurar enlouquecidamente pela bolsa enquanto ele toca... 

domingo, março 30, 2014

Dores necessárias.

- Você tá com a carteira de vacinação aí?
- Tá aqui... – e mostrei-lhe uma folha amarelada, até a cópia já era antiga. Além da cor amarelada do papel, a identificação manuscrita, a tinta da caneta já desgastada pelo tempo, as datas, tudo lembrava a uma época remota. A única coisa que não parecia ser antiga era a lembrança dos dias de vacina.
Para se ter uma ideia, a função era delegada a meu pai. E isso significa que a coisa era muito séria. Quando a minha mãe abria mão das rédeas da situação e passava a obrigatoriedade para o meu pai significava que era necessário alguém mais bravo (ou seja, forte o suficiente para não amolecer diante do choro manhoso).  Ficava para o meu pai a função de acabar com a frescura.
-Vou chamar o seu pai! - era a ameaça mais eficiente porque eu sabia como seria se ela se cumprisse. Isso acontecia porque, confesso, sempre tive um dom especial para os dramas e meu pai não dava a menor bola pra eles: “Seu mal é sono!!!”  Ele dizia sabendo muito bem que aquele choro sentido não passava de uma manha de criança.
Mas diferente da manha para tomar o remédio ruim, comer o feijão e fazer tarefa, o problema dos dias de vacina era o medo. Eu sentia um medo absurdo de agulhas. Ou melhor, o medo era da dor. O que me apavorava não era a agulha em si, mas a dor que eu sabia que ela causaria. Sempre fiz qualquer negócio para evitar as injeções. Tomava remédio amargo, jurava juradinho que não daria trabalho para engolir comprimidos, tomar antibióticos, fazer inalações, desde que eu me livrasse das injeções. Acontece que, com a vacina, nenhum dos meus argumentos funcionaria. Ela era importante, evita doenças e para ela não há alternativa.
E aí eu chorava, esperneava , gritava, sofria antes mesmo da agulha encostar em mim. E queria ver minha absoluta revolta era dizer: fica relaxada, se não relaxar, é pior. E me diga: como relaxar diante da iminência da dor?
- Você não tomou o reforço da vacina de tétano...  – ela perguntou afirmando enquanto eu limitei a concordar com a cabeça, conformada com a ideia de que a tentativa de fuga não seria definitiva. – Precisa tomar! Você é professora, às vezes, pode se machucar com alguma coisa. Tem que tomar.
Eu sabia que ela estava certa. Aliás, eu sempre soube dos bons argumentos das vacinas.  Mas a fama da tal vacina de tétano aos quinze anos só agravava a situação. Não havia um que dissesse que não doía. Pelo contrário, doía e muito. E assim, eu fugi dela por mais de dez anos.
E lá estava eu, uma mulher adulta, com minha carteirinha amarelada na mão, me sentindo ridícula por estar com medo da dor. E mais: com medo de passar vergonha, chorar muito ou algo do tipo. Minha mãe não teria que brigar comigo, meu pai não teria que me segurar, peguei meu carro e fui, sozinha, de quase livre e espontânea vontade.
- Relaxa o braço - nem o tom amoroso e compreensivo da atendente fazia diminuir a revolta com essa recomendação- uma picadinha...
Fechei os olhos, bem forte, como eu costumava fazer embaixo do cobertor quando achava que tinha um fantasma no meu quarto, e esperei a dor excruciante.

E ela não veio. Doeu, mas não chegou nem perto do que eu achava que seria. Aliás, o que será que eu esperava? Abri os olhos percebendo que foram tantos anos com medo daquela agulha e ela ficou menos de dez segundos no meu corpo. Fiquei com mais de dez anos com medo de tomar essa vacina e entre um abrir e fechar de olhos, ela acabou. Ainda sinto um leve dolorido no braço esquerdo, mas que em breve já terá desaparecido. E agora estou protegida pelos próximos dez anos contra o tétano. Sensação de dever cumprido.  Um leve alívio.
O que nos causa medo é o desconhecido. É o nosso corpo gritando, piscando mil luzes de alerta “você está em perigo!”. E para nos proteger, paralisamos. Para deixar de sentir a sensação estranha e incômoda, angustiante, que é o medo, desistimos. Adiamos. Esquecemos. Ou fingimos esquecer.  O medo nos impede. Paralisa. Ele faz com que você não faça nada novo, que continue a sua rotina, dentro do planejado, do conhecido e do seguro.
O mesmo medo que te impede de pular de uma ponte de 20 metros é o que te faz não aceitar aquele emprego novo. O mesmo medo, que te faz evitar as vacinas, também faz que você não retorne a ligação daquela nova pessoa que apareceu em sua vida. O medo, que faz com que você evite andar sozinha à noite nas ruas, é o que te faz adiar aquela viagem que você sonhou desde criança e deve fazer sozinha. O medo, que tem impede de fazer uma ultrapassagem perigosa, limita o seu mundo. O medo, que salva,  também condena.

Saindo do posto de vacinação sem nenhuma lágrima prevista saindo dos olhos, um pensamento me dominava: o medo me tirou quantas dores libertadoras?