domingo, março 30, 2014

Dores necessárias.

- Você tá com a carteira de vacinação aí?
- Tá aqui... – e mostrei-lhe uma folha amarelada, até a cópia já era antiga. Além da cor amarelada do papel, a identificação manuscrita, a tinta da caneta já desgastada pelo tempo, as datas, tudo lembrava a uma época remota. A única coisa que não parecia ser antiga era a lembrança dos dias de vacina.
Para se ter uma ideia, a função era delegada a meu pai. E isso significa que a coisa era muito séria. Quando a minha mãe abria mão das rédeas da situação e passava a obrigatoriedade para o meu pai significava que era necessário alguém mais bravo (ou seja, forte o suficiente para não amolecer diante do choro manhoso).  Ficava para o meu pai a função de acabar com a frescura.
-Vou chamar o seu pai! - era a ameaça mais eficiente porque eu sabia como seria se ela se cumprisse. Isso acontecia porque, confesso, sempre tive um dom especial para os dramas e meu pai não dava a menor bola pra eles: “Seu mal é sono!!!”  Ele dizia sabendo muito bem que aquele choro sentido não passava de uma manha de criança.
Mas diferente da manha para tomar o remédio ruim, comer o feijão e fazer tarefa, o problema dos dias de vacina era o medo. Eu sentia um medo absurdo de agulhas. Ou melhor, o medo era da dor. O que me apavorava não era a agulha em si, mas a dor que eu sabia que ela causaria. Sempre fiz qualquer negócio para evitar as injeções. Tomava remédio amargo, jurava juradinho que não daria trabalho para engolir comprimidos, tomar antibióticos, fazer inalações, desde que eu me livrasse das injeções. Acontece que, com a vacina, nenhum dos meus argumentos funcionaria. Ela era importante, evita doenças e para ela não há alternativa.
E aí eu chorava, esperneava , gritava, sofria antes mesmo da agulha encostar em mim. E queria ver minha absoluta revolta era dizer: fica relaxada, se não relaxar, é pior. E me diga: como relaxar diante da iminência da dor?
- Você não tomou o reforço da vacina de tétano...  – ela perguntou afirmando enquanto eu limitei a concordar com a cabeça, conformada com a ideia de que a tentativa de fuga não seria definitiva. – Precisa tomar! Você é professora, às vezes, pode se machucar com alguma coisa. Tem que tomar.
Eu sabia que ela estava certa. Aliás, eu sempre soube dos bons argumentos das vacinas.  Mas a fama da tal vacina de tétano aos quinze anos só agravava a situação. Não havia um que dissesse que não doía. Pelo contrário, doía e muito. E assim, eu fugi dela por mais de dez anos.
E lá estava eu, uma mulher adulta, com minha carteirinha amarelada na mão, me sentindo ridícula por estar com medo da dor. E mais: com medo de passar vergonha, chorar muito ou algo do tipo. Minha mãe não teria que brigar comigo, meu pai não teria que me segurar, peguei meu carro e fui, sozinha, de quase livre e espontânea vontade.
- Relaxa o braço - nem o tom amoroso e compreensivo da atendente fazia diminuir a revolta com essa recomendação- uma picadinha...
Fechei os olhos, bem forte, como eu costumava fazer embaixo do cobertor quando achava que tinha um fantasma no meu quarto, e esperei a dor excruciante.

E ela não veio. Doeu, mas não chegou nem perto do que eu achava que seria. Aliás, o que será que eu esperava? Abri os olhos percebendo que foram tantos anos com medo daquela agulha e ela ficou menos de dez segundos no meu corpo. Fiquei com mais de dez anos com medo de tomar essa vacina e entre um abrir e fechar de olhos, ela acabou. Ainda sinto um leve dolorido no braço esquerdo, mas que em breve já terá desaparecido. E agora estou protegida pelos próximos dez anos contra o tétano. Sensação de dever cumprido.  Um leve alívio.
O que nos causa medo é o desconhecido. É o nosso corpo gritando, piscando mil luzes de alerta “você está em perigo!”. E para nos proteger, paralisamos. Para deixar de sentir a sensação estranha e incômoda, angustiante, que é o medo, desistimos. Adiamos. Esquecemos. Ou fingimos esquecer.  O medo nos impede. Paralisa. Ele faz com que você não faça nada novo, que continue a sua rotina, dentro do planejado, do conhecido e do seguro.
O mesmo medo que te impede de pular de uma ponte de 20 metros é o que te faz não aceitar aquele emprego novo. O mesmo medo, que te faz evitar as vacinas, também faz que você não retorne a ligação daquela nova pessoa que apareceu em sua vida. O medo, que faz com que você evite andar sozinha à noite nas ruas, é o que te faz adiar aquela viagem que você sonhou desde criança e deve fazer sozinha. O medo, que tem impede de fazer uma ultrapassagem perigosa, limita o seu mundo. O medo, que salva,  também condena.

Saindo do posto de vacinação sem nenhuma lágrima prevista saindo dos olhos, um pensamento me dominava: o medo me tirou quantas dores libertadoras?