segunda-feira, outubro 02, 2006

"Eu sei, mas não devia" por Marina Colasanti


Eu sei, mas não devia,. Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e não ter outra vista que não as janelas ao redor. E por que não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar sobressaltado de amnhã porque está na hora. A tomar café correndo, porque está atrasado, A ler o jornal no ônibus porque não poder perder o tempo de viagem. A comer sanduíches porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já está noite. A cochilar no ônibus porque se está cansado, a deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abir o jornal e ler sobre a guerra. E, acieitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: "hoje não posso ir". A sorrir para pessoas sem receber um sorriso de volta, a ser ignorado quando precisamos tanto ser vistos.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. A lutar para ganhar dinheiro com que se paga.E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila pra pagar. E a pagar muito mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez vai pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filaas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar nas ruas e ver cartazes. A abrir revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir comercias. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata de produtos.
A gente se acostuma com a poluição. Á luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural, às bactérias da agua potável. Á contaminação da água do mar. à lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo na madrugada,a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio você senta na primeira fileira e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, você molha só o pé e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no final de semana. E se no fim de semana não tem nada pra fazer, a gente vai dormir cedo, satisfeito porque tem sempre o sono atrasado.
A gente se acostuma para não ralar nas asperezas, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e das baionetas, para poupar o peito. A gente se acostuma a poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que de tanto se acostumar, se perde a si mesma.
(Marina Colasanti, Jornalista)

Um comentário:

Alê Vieira disse...

só pra constar.. esse texto de presentação seu, tanto do blog como do Orkut, da Colasanti, é atualemente o que melhor posso apresentar como explicação da minha vida supostamente moderna...